sexta-feira, 29 de março de 2013

Sentidos


Pensamentos em quem não devo despertam-me.

Fico a pensar no que nos acorda todas as manhãs. Quando não há despertador, o quarto mantém a escuridão (finalmente) e não há som nenhum do exterior. Os sinos parece que já não têm o mesmo efeito ou podem simplesmente não ter tocado hoje. Afinal é dia de reflexão e religiosamente de silêncio. 

O ritual matinal mantém-se e num misto de preguiça e vontade de fazer mais decido ir num passeio. Ainda penso pegar no carro mas saber que não tenho feito nenhum exercício pesa como uma pedra gigante.

O sol acompanha o vento que se faz sentir e decido-me pela camisola amarela em vez da cinzenta. A encharpe às flores colmata a essência primaveril junto com as sapatilhas de caminhada todo-o-terreno trazidas especialmente para o efeito. Ainda não dispenso a parka, mesmo que a meio caminho tenha que vir no braço. Podia ter dispensado o telemóvel mas mesmo assim meto-o no bolso juntamente com a chave e o cartão. Cautelosamente uma identificação dado que ainda me mantenho quase no anonimato e pode ser necessário, nunca se sabe. Tão cauteloso como o protetor solar que este ano é a primeira vez que me besunta oleosamente a cara.

Penso em voltar atrás para ir ouvindo música. Rejeito a ideia.  Afinal quero calar os pensamentos, não abafá-los.

Sigo em direção ao mar. Por um caminho sugerido mas desconhecido. Como a grande parte dos que agora percorro. 

Pessoas dentro das suas casas seguem os seus afazeres, oiço-as pelas janelas escancaradas, por portas entreabertas.

Quase a chegar ao mar um senhor velhinho está ao seu portão. Agarrado à madeira escura e envelhecida. Segue-me com o olhar gasto e frágil. Mesmo perto dele desejo-lhe um bom dia. Retribui-me quase que atrapalhadamente, não deve estar habituado a muitas falas, que lhe falem.

Finalmente chego à encruzilhada, ao mar. Não resisto e sento-me no muro a olhar a espuma das ondas que rebentam furiosamente nas pedras basálticas escuras e aguçadas. O vento revolta o azul transformando-o em branco. Um branco que contrasta com as flores tímidas que brotam, amarelas, carmim, nos ramos das árvores que teimam em erguer os seus ramos secos ali, perto de um rocio salgado que desgasta qualquer vida.

Enquanto tento decidir em que direção seguir um carro dirige-se para a direita. O desconhecido. Alguém me observa no alto mas calmamente resolvo-me pela esquerda, onde sei onde sairá. Mesmo assim o percurso surpreende-me.

As curvas de eucaliptos dão-me a sombra, as suas folhas arejam o ambiente enquanto libertam aquele aroma que adoro e me faz lembrar a minha escola primária num flashback sentada sozinha na relva, junto a um plátano majestoso, a observar cada pormenor que me rodeia.

A estrada tortuosa revela posteriormente casas seguidas. Modestas com cães acorrentados a casotas lúgubres como as dos seus donos. Galinhas castanhas cacarejam, um galo da Madeira com a crista vermelha ergue-a imponente enquanto passo. Um pato branco descobre-me e não se esconde nem se recolhe como os humanos que encontro e fecham rapidamente a porta à minha passagem. Verdadeiros castelos erguem-se colados àquela realidade e as diferenças podem-se resumir à carteira ou colchão.

Como descrito chego ao destino. Um destino em que o mar parece ainda mais tumultuoso. Onde a rebentação é mais alta e atinge o passeio, os bancos azuis onde tenciono sentar-me. Ficará para um próxima altura, com um livro. A envolvência convida a voltar inúmeras vezes.

Volto pelo mesmo caminho. A alternativa é demasiado oca. Os cães continuam a ladrar. O único que não o faz é também o único que não está preso. O maior, o mais preto, o com a aparência mais amável e meiga. Lembrança que as aparências iludem.

As galinhas já estão à solta e não deixo de pensar em como se deliciariam com as couves verdes que há pouco me fizeram pensar em caldo verde. O galo está exatamente na mesma posição, aparentemente colado como o seu olhar em mim.

Inversamente à descida agora subo sem esforço. Já não encontro o velhote. Em vez de cortar para casa vou em direção à igreja que quero conhecer. Fechada como sempre que lá passo. Nem à porta alguma informação. As portas vermelhas altas fazem-me esquecer outro senhor a quem cumprimentei com um bom dia e que me respondeu resmungão que já é tarde e não manhã. Sorrio para dentro a pensar que a tarde também é dia e que lhe desejo sempre ótimos dias, menos sorumbáticos.

Penso em como será um excelente percurso para caminhar e quando estiver mais em forma aventurar-me na corrida. Mais uma vez não faço nenhum atalho e dou a volta para aumentar o percurso.

Os pensamentos acabaram por se esvoaçar lentamente com a maresia. 

Chego a casa a cheirar a eucalipto, vento e mar.

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