A Dona J. era amiga da família desde que eu me conheço.
A primeira recordação que tenho dela é por um presente. Era um mergulhador cor de laranja mecânico que usava na banheira no banho. Ele nadou imenso. Primeiro perdeu as barbatanas, depois as pernas e depois um braço. O outro dia, em arrumações, a minha mãe encontrou-o na caixa de brinquedos antigos e deitou fora o corpo inanimado.
A primeira vez que a vi pessoalmente veio passar férias cá a casa. Mostramos-lhe a ilha, conversava muito comigo e com o meu irmão. Contou-nos histórias serenas. Da sua infância.
Continuamos sempre o contato. Telefonemas de sábado à noite intermináveis em que desabafava com os meus pais sobre a amante e a outra família assumida do marido, dos divórcios dos filhos, do orgulho misturado com incompreensão dos netos. Onde perguntava por todos os meus familiares pelo nome.
Quando fui viver para o Porto visitava-a algumas vezes. Levava-lhe chá e conversávamos, mostrava mais fotografias das bisnetas.
Fui ao funeral do marido militar onde ela fez questão de me segredar que "a dinamarquesa" estava naquele momento num avião para a última despedida do homem da sua vida.
Esteve presente na minha queima das fitas e continuou a dar-me presentes simbólicos.
Fui vê-la da última vez que estive no Porto. Não me reconheceu. Impressionou-me o estado a que chegou.
A sua errática altivez estava presa numa cama, com pensamentos confusos. Não me reconheceu. Impressionou-me imenso não querendo recordar aquela imagem. Preferia a segurança a que nos sempre habituou. O sorriso sensato e vivido.
Seria a última vez que a via, que lhe falava e beijava a testa.
Infelizmente, pela minha profissão vejo muita essa despersonalização das pessoas... e é algo a que nunca me vou habituar. Nem ao choque das famílias. Nem aos momentos de transição (com periodos de lucidez em que se apercebem do que está a acontecer). Nunca me vou habituar. Mas hei-de estar sempre lá... A dar a mão, o ombro e o colo. Fiz uma promessa, um juramento. Mas nunca vou encarar isso como algo normal.
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